domingo, 9 de agosto de 2009

Ao Momento Presente

Por: Caio Fernando Abreu

Deixe que ele respire, como uma coisa viva. E tenha muito cuidado: ele pode quebrar.
Como um bebê ou um cristal: tome-o nas mãos com muito cuidado. Ele pode quebrar, o momento presente. Escolha um fundo musical adequado — quem sabe, Mozart, se quiser uma ilusão de dignidade. Melhor evitar o rock, o samba-enredo, a rumba ou qualquer outro ritmo agitado: ele pode quebrar, o momento presente. Como um bebê, então, a quem se troca as fraldas, depois de tomá-lo nas mãos, desembrulhe-o com muito cuidado também. Olhe devagar para ele, parado no canto do quarto ou esquecido sobre a mesa, entre legumes, ou misturado às folhas abertas de algum jornal. Contemple o momento presente como um parente, um amigo antigo, tão familiar que não há risco algum nessa presença quieta, ali no canto do quarto. Como a uma laranja, redonda, dourada — mas sem fome, contemple o momento presente. Como a cinza de um cigarro que o gesto demorou demais, caída entre as folhas de um jornal aberto em qualquer página, contemple o momento presente. E deixe o vento soprar sobre ele.
Desligue a música, agora. Seja qual for, desligue. Contemple o momento presente dentro do silêncio mais absoluto. Mesmo fechando todas as janelas, eu sei, é difícil evitar esses ruídos vindos da rua. Os alarmes de automóveis que disparam de repente, as motos com seus escapamentos abertos, algum avião no céu, ou esses rumores desconhecidos que acontecem às vezes dentro das paredes dos apartamentos, principalmente onde habitam as pessoas solitárias. Mas não sinta solidão, não sinta nada: você só tem olhos que olham o momento presente, esteja ele — ou você — onde estiver. E não dói, não há nada que provoque dor nesse olhar.
Não há memória, também. Você nunca o viu antes. Tenha a forma que tiver — ele não se parece a nada que você tenha visto antes. Só está ali, à sua frente, como um punhado de argila à espera de que você o tome nas mãos para dar-lhe uma forma qualquer... E se você não o fizer, ele se fará por si mesmo...

Os Insetos Interiores

Composição: Fernando Anitelli

Notas de um observador:


Existem milhões de insetos
Alguns rastejam, outros poucos correm
A maioria prefere não se mexer
Grandes e pequenos, redondos e triangulares
De qualquer forma são todos quadrados
Ovários oriundos de variadas raízes
Radicais, ramificações da célula rainha
Desprovidos de asas, não voam nem nadam
Possuem vida, mas não sabem
Duvidam do corpo
Queimam os seus filmes e suas floras
Para eles, tudo é capaz de ser impossível
Alimentam-se de nós
Nossa paz e ciência
Regurgitam assuntos e sintomas
Avoam e bebericam sobre as fezes
Descansam sobre a carniça
Repousam-se no lodo,
Lactobacilos vomitados sonhando espermatozóides que não são

A futilidade encarrega-se de maestra-los.
São inóspitos.
Nocivos.
Poluentes.
Abusam da própria miséria intelectual,
das mazelas vizinhas, do câncer e da raiva alheia.
O veneno se refugia no espelho do armário - lembrou um deles.
O ninho deve estar infectado! – lembrou outro.
Antes do sono: o beijo de boa noite.
Antes da insônia: a benção.
Arriscam a partilha do tecido que nunca se dissipa: a família.
São soníferos...
Chagas sem curas.
Não reproduzem. São inférteis, infiéis, invertebrados.
Arrancam as cabeças de suas fêmeas.
Cortam os troncos
Urinam nos rios
E na soma dos desagravos, greves e desapegos,
Esquecem-se de si.
Pontuam-se.
A cria que se crie!
A dona que se dane!

Os insetos interiores proliferam-se assim... na morte e na merda.

Seus sintomas?
Um calor gélido e ansiado na boca do estomago
A sensação de...o que é mesmo que se passa?
Um certo estado de humilhação conformado parece bem vindo e quisto.
É mais fácil aturar a tristeza generalizada que romper
com as correntes de preguiça e mal dizer
Silenciam-se no holocausto da subserviência,
O organismo não se anima mais.

E assim, animais ou menos assim...
Descompromissados com o próprio rumo,
desprovidos de caráter e coragem
desatentos ao próprio tesouro...
Caem.

Desacordam todos os dias
Não mensuram suas perdas e imposturas!
Não almejam.
Não alma.

Já não mais amor.

Assim são:
Os insetos interiores